quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Descaso.
Entregue ao descaso. O cão passou por mim tropeçando em suas quatro patas brancas. Não quis ver. Levantei do degrau e fui caminhar. Sabia que algo não estava no seu lugar. Carros, crianças, homens e mulheres. Imensos prédios. Eu ali. Não tinha fome. Não sentia frio. Não pensava mais em nada. Minhas pernas me carregavam dramaticamente por aquela rua sem ao menos me consultarem. Apesar de tudo conseguia ainda ver e escutar, ainda que todas as minhas atitudes fossem passivas diante desses impulsos. Não sei dizer ao certo sobre minha respiração. Creio que a minha carne legitimou igual controle sobre ela. Eu era cão em carne de vontade própria. Não acredito que será muito fácil compreender todo o processo. Na verdade, não tenho vontade de compreender nada. A facilidade de ser letárgico me fascinava. Aos poucos memória por memória desapareciam. Estaria morrendo? Cheguei a pensar agora cego. A morte viria a calhar, pois ela sentenciaria o fim. Recordei de alguns amigos que me contavam sobre uma possível vida após o fim. A carne reagiu deixando algo escorrer de meus olhos. Senti minha face contrair. O ar fugiu de meus pulmões e um grito alto transbordou de minha boca para toda a rua. Ganhei velocidade. Corria. Gritava. Chorava. Era cego. Era surdo. Gritava mais. Minhas mãos se contraiam. Minhas unhas perfuravam minha pele. Latia. Pulava jardins. Desviava de postes. Tinha meus dentes expostos. Meus olhos estavam vermelhos. O cheiro da poeira cotidiana contaminava meus pulmões. Não pensava. Era bicho. Era pó. Era nada.
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Uma expressão profunda de um dia de cão, condenado a ser livre, sem direção. Esperando que alguém o direcione pela coleira ou fugindo da carrocinha?
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