domingo, 9 de maio de 2010

A despedida.


A soleira ainda estava molhada quando peguei minhas pesadas malas rumo a uma nova vida. Vento frio torceu meu rosto para a antiga casa. Antigos amigos, antigos amores, antigos conflitos, antigas muitas coisas que ainda estavam vivas em minha mente. Lembrava que ali naquela garagem havia aprendido a andar de bicicleta. Correr sobre rodas. Velocidade proporcionando ilusória liberdade. Naquela mesma garagem já havia até brigado. Olhos vermelhos. Face úmida. Gritos intermináveis que culminaram numa infinita separação. Coloquei minhas malas no banco de trás do carro. A rua continuava indiferente a todos os meus dramas. Rua pela qual tantas vezes fui e voltei. Rua por onde já caminhei sozinho e de mãos dadas. Entrei no carro. Dei a partida. A vizinhança de muitos anos. Inumeráveis lembranças. Reflexo de meus olhos num dos espelhos do carro. Não me encarei. Reposicionei-o. Passando uma mão pelo rosto. Respirei. Cheguei à primeira avenida. Acelerei. Estava partindo para sempre. Quantas vezes eu havia passado por ali? Será que um dia vou conseguir me lembrar com tanta clareza das coisas que agora vejo? Em meu peito uma dor incontrolável. Estava cumprindo minhas palavras de anos atrás. Estava indo embora em busca de uma vida independente. Estranho era me sentir tão parecido com uma criança ao se perder da mãe. Passava em frente à antiga escola. Aula por aula, colegas por colegas emergiam de minha memória. Brincadeiras tolas. Risadas altas. Descobertas incríveis. Fora o tempo em que via aquele mundo tão enorme. Tudo não passava de sons ecoando bem longe e abraços imagéticos projetados na tela consciente de meu passado. Chegara à principal avenida da cidade. Velozmente casas, lojas, pessoas, pontos de ônibus e carrinhos de bebe atravessavam de um canto a outro as janelas do carro, e com elas deixava parte de mim. Em cada uma daquelas esquinas um pensamento isolado me observava. Era preciso partir. Meu pé acelerava tremendo levemente sobre o pedal. Numa parte mais alta da avenida observei a imensidão de concreto constituindo incrível paisagem contrastante com o claro cinza das nuvens. Eu era um filho nascido do concreto ventre. Era filho de todo aquele acolhedor e inanimado concreto. Por mais que eu fosse embora, ainda assim seria parte daquela matéria e para ali seria atraído, ainda que por pensamento. Encostei o carro naquela vaga. Retirei minhas malas. Acompanhado de estranhos feitos da mesma matéria que eu, e de outros de outras matérias, misturei-me. Carregava as malas já sem sentir o peso. Talvez eu levasse mais do que eu precisava. Talvez eu o fizesse para não me esquecer do passado. Acomodando-me minutos depois em uma confortável poltrona, observei por uma janela voadora parte de mim marcado no chão por uma faixa indicando o fim. Acelerei. Acelerei o máximo que consegui. Emancipei-me do concreto ventre. Voava pela primeira vez sem que a liberdade fosse ilusória. Para o meu pavor vivia a verdade. E foi assim que nesse estranho novo mundo cheguei.

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