quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Geburt.

Sorri. Bebia vinho. ri. Tinha uma arma na mesa. Joguei a taça contra a parede. Gargalhei. Liguei a vitrola. Dancei. Sozinho. Pés descalços. Terno completo. Sapatos queimando numa lareira singular. Peguei a garrafa. Engasguei-me. Balbuciei uma frase. Ri sem emitir som. Quebrei a garrafa. Peguei a arma. Sorri. Me abençoei. Voltei para a sala. Dancei. Girava a arma. Mirei uma foto na parede. Ri. Atirei. BANG. BANG. Matei o passado. A foto sangrava. A parede manchada. Eu louco na poltrona sentei. Segurava a arma. Sorria tonto. Girei a arma. Atirei em minhas entranhas. Suprimi a dor. Matei o futuro. Rastejando mais para perto da lareira segurei o jornal. Me cobri de jornal. Matei o presente. Nasci em Setembro do mesmo ano.

Descaso.

Entregue ao descaso. O cão passou por mim tropeçando em suas quatro patas brancas. Não quis ver. Levantei do degrau e fui caminhar. Sabia que algo não estava no seu lugar. Carros, crianças, homens e mulheres. Imensos prédios. Eu ali. Não tinha fome. Não sentia frio. Não pensava mais em nada. Minhas pernas me carregavam dramaticamente por aquela rua sem ao menos me consultarem. Apesar de tudo conseguia ainda ver e escutar, ainda que todas as minhas atitudes fossem passivas diante desses impulsos. Não sei dizer ao certo sobre minha respiração. Creio que a minha carne legitimou igual controle sobre ela. Eu era cão em carne de vontade própria. Não acredito que será muito fácil compreender todo o processo. Na verdade, não tenho vontade de compreender nada. A facilidade de ser letárgico me fascinava. Aos poucos memória por memória desapareciam. Estaria morrendo? Cheguei a pensar agora cego. A morte viria a calhar, pois ela sentenciaria o fim. Recordei de alguns amigos que me contavam sobre uma possível vida após o fim. A carne reagiu deixando algo escorrer de meus olhos. Senti minha face contrair. O ar fugiu de meus pulmões e um grito alto transbordou de minha boca para toda a rua. Ganhei velocidade. Corria. Gritava. Chorava. Era cego. Era surdo. Gritava mais. Minhas mãos se contraiam. Minhas unhas perfuravam minha pele. Latia. Pulava jardins. Desviava de postes. Tinha meus dentes expostos. Meus olhos estavam vermelhos. O cheiro da poeira cotidiana contaminava meus pulmões. Não pensava. Era bicho. Era pó. Era nada.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A resposta

Não é preciso mais palavras. Olhava aquele mar cinza. Estava tudo ali. Seu cheiro misturado a maresia consegui confundir meus sentidos. Estava na minha frente. Sabia que era de propósito. Ainda que seu fosse propósito ruim, estava de frente para mim. Senti pena de você. Tão magro, tão bem vestido e com um olhar tão vazio. Faltavam-lhe lágrimas para brilhar o olhar mais uma vez. Encarei de uma só vez. Não queria que fosse necessário outro contato visual. "Boa noite". "Noite". Cruzei seu caminho quando segurou meu braço. "Não seja tolo." Sorriu de canto para mim. "Eu sei o que você pensa de mim. Eu sei que você tenta se enganar." Sorri suavemente. Notei sua mão apertando meu braço e sorri. "Não entendo. Se engana tanto pra que?!" Busquei seus secos olhos. Sorri. Recuei o braço e voltei a andar. "Foge de mim assim por medo?" Voltei para olha-lo quando um caminhão o atingiu.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O ciclo do louco

Olhos agitados. Mãos tremulas. Silêncio. Luz deixando o coitado cego. Movia-se para frente e para trás. Dizia nomes baixinho. Olhos fechados com força. Olhos bem abertos. Um grito. Levantou-se. Jogou-se conta a parede. Jogou-se contra outra. Correu em circulos. Bradava. Desesperado chorou. Caiu no chão batendo com a cabeça. Chorava com força. Batia as pernas. Tentava mover as mãos atadas. Parecia uma barata agonizando com veneno. Movia o rosto perturbadoramente. Dizia nomes. Clamava por uma mulher. Debatia-se com mais força. Estava sozinho. Apagaram-se as luzes. As mãos estavam se soltando. Escuridão. Levantou-se apoiando as mãos no chão. Uma luz sobre seu corpo. De pé alisou a face. Estagnou com as mãos à face. Silêncio. Escuridão. Luz azulada sobre o enfermo. Grito de dor. Outro grito logo atrás. Grito de mulher. Luz azul iluminando-a. Grito de criança. Luz amarela iluminando-a. Escuridão. Risada do louco. Luz vermelha sobre o mesmo. Silêncio. Mulher cai morta sobre seus pés. Criança chora sobre seus pés. Escuridão. Luzes coloridas. Louco rodando sem parar em silêncio. Para de costas. Grito de horror. Escuridão. Olhos agitados. Mãos tremulas. Silêncio. Luz deixando o coitado cego. Movia-se para frente e para trás. Rezava baixinho.

sábado, 28 de agosto de 2010

Do eu ao nós.

Se me entregar ao silêncio que preenche minha alma tornarei a letárgica existência de outra hora. Minhas mãos tão fracas já não conseguem tatear o escuro. Mancando, avanço pelo assoalho. As velhas cortinas do teatro arrastam sobre minha face deixando a poeira da fama em minha pele. Dançam as cortinas em ziguezague. Pavoroso escuro ao meu redor. Poltronas vazias. Teto bem alto. Luar banhando a solidão teatral. Grito. Salto e corro em círculos. Abro meus braços respirando mais uma vez como se ainda fosse vivo. Mansa luz sobre minha trajetória circular. Infinitos desconhecidos invadem de luz, salto e braços movimentados o meu palco. Atravessam os espaços escuros. Preenchem poltronas. Conversam consigo. Gargalham. Suspiram. Damos as mãos a formar uma roda que gira agora mais tranquila. Somos humanizados uns pelos outros. Somos mais uma vez vivos. Mãos que tocam mãos. Tato que certifica fluidez de consciência, ainda que todos possuam os olhos voltados para dentro de si. Assim, dançando ao ritmo de um opus de Chopin, vibramos a cada nota do piano. Assim, amores, poltronas, antigas fotografias, longas cortinas vermelhas giram em difusas imagens. Os pés vão empoeirando-se e levantam névoa pelo palco. De mãos ainda em contato somos um só grupo de dançarinos em harmonia. Saltamos. Batemos juntos os pés. Giramos mais rápido. Levantamos mais névoa. Somos mais nós que eu. Somos menos conscientes de nós mesmos. Somos mais todo e vida. A névoa nos cobre, nos envolve. nos leva.

domingo, 22 de agosto de 2010

A chaga.

Eu sou a loucura. Sou tua chaga ou cura de um mal cotidiano. Eu sou a peste que te levará à morte ou o caminho para sua fuga. Falo com você louco. Falo com você enfermo sonhador. Tens medo ou aproveita-me como uma droga? Tomo seu coração, mente e corpo. Brinco com teus desejos. Destruo suas queridas memórias. Embaralho sua visão. Não tenha medo. O remédio logo vem. Logo logo se sentirá mais feliz. Escuta esses barulhos? Escuta minhas infinitas vozes ecoando ao seu redor? Consegue sentir o frio na espinha de um perigo invisível? Pobre louco. Já tomei-te para mim. Sou seu mundo. Sou sua vida. Tudo se resumirá a mim. Pobre louco. Jamais sairá daqui. Prendi-te em caixa preta. Ficarás vagando perdido até, por fim, virar pó. Teu espírito já dominado tornará-se escravo de seus próprios desejos embaralhados. Eu sou a loucura. Você está na loucura. Você é um louco sem cura. BANG!

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Um aviso.

Não creia leitor em nenhuma de minhas tortas palavras, pois elas estarão sempre empreguinadas de desejo. Promoverei sempre imagem distorcida, afim de criar uma realidade para confundí-lo, e muito certamente conseguirei. A partir de agora não tome minhas músicas como inspiração. Não observe meus quadros como se fossem as obras mais belas do mundo. São cacos de imaginação em concretude imperfeita. Se não precisasse não os teria vendido, mas é que hoje em dia tudo se vende. Não leve minhas ideologias a sério. Não me siga como exemplo. É tudo falso. É releitura criativa. É velharia que só você se interessa. Invente seus sonhos, de preferencia não a partir dos meus, pois eles já foram vendidos também. Ignore meus posts no twitter, meus scraps, meus depoimentos, minhas cartas e discursos. Foram leiloados por caras de admiração alheia. Queime meus diplomas, rasguem os meus livros. Foram pagos com orgulho vazio. Destrua minhas fotografias, rabisque meus desenhos, apague os meus vídeos. Midiatizam o que se pode por numa sacola plástica. Delete meus dados pessoais, senhas, números de contas e identidade. Esse não sou eu. Doe meu carro, roupas, cachorro e caneta de estimação. Feche a porta de meu quarto ao sair. Abandone meu corpo num canto qualquer, e minhas esperanças e vontades num infinito abstrato e inacessível. Enrole o tapete persa, vai lhe render algo no futuro. Venda parte de mim se conseguir como fizeram com Galileu. Talvez seja a última coisa que possa vender, antes de qualquer um produrzir outras releituras criativas como as que costumava produzir. Por fim, Esqueça minhas risadas, piadas, meu abraço de despedida, meus votos sinceros. Esqueça a existência de um alguém que já nem tem nome. Caso tenha, de fato, feito isso terá a prova de que nunca me conheceu de verdade, nem prestou atenção em meus avisos como o do início do texto.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Tic-Verde. Tac- Amarelo. Tic-Vermelho.

Traduzo cada parte daquele semáforo em palavras, que com outras formarão frases, e que por conseguinte textos. Verde dinâmico, Amarelo apático, Vermelho estático. O tic-tac que nem escuto me incomoda ao ponto de me fazer respirar mais fundo. Verde certeiro, Amarelo ligeiro, vermelho sobe um passageiro. Já não me aguento de tanta cor e sinal. Sinal signo ou Signo sinal? O tic-tac que nem ouvi, mas que me incomodava sumiu. Verde. Que relação teria verde com "passe adiante"? O efeito tic-tac agora atingia meus pensamentos. A falta do que fazer fez minha mente fazer algo para fazer, ainda que nada além de um sono eu quisesse ter. Amarelo. Novamente sou desafiado contra mim mesmo a superar o desejo de verde. Amarelo mais verde ou Amarelo mais vermelho? Quem poderia me responder era o tic-tac, mas como o orgulho não me deixou dialogar, parei. Era Amarelo mais verde. Irritação. Que me custaria ter indagado algo a alguém? Me custaria mais do que um Amarelo mais verde. Voltei a respirar fundo. Vermelho. Esqueci completamente do orgulho e do tic-tac ao ver Vermelho me encarando. Era uma audácia da parte do Vermelho. Já não me bastasse perder um Amarelo mais verde, agora suportar o vermelho?! O efeito tic-tac batia em minha face com a suavidade de uma pedra. Inacreditável absurdo e perca de tempo. Verde. Encosto o móvel e saio. Basta! Ando pela calçada apressado com os nervos travados, e em sincronizados passos de tic-tac.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Transcendente toque.

O sino da loja tocou quando entrei ali. Era de tarde. Aproximei-me do balcão pedindo uns pães como de costume. Fui dar o dinheiro ao padeiro. Estava mais um dia trabalhando em minha padaria. Tinha atendido a senhora que acabara de ter uma filha, quando entrou o Doutor. Pediu-me uma dúzia de pães franceses. Dei-lhe o troco. Sai da padaria carregando a sacola de pães pela rua. Havia comprado aqueles pães, pois teríamos um lanche de despedida de um dos médicos que estava para se aposentar. Andando pela calçada dei de cara com uma antiga paciente que fora operar a vesícula, como era uma senhora de idade elevada, abraçou-me gentilmente. Encontrara com o médico que salvou a minha vida, Graças a Deus. Andei, mesmo que não tão rápido como fazia na juventude até a floricultura da viúva que antes fora minha vizinha de outra rua. Cumprimentei-a com um beijo na face. Recebia a visita de uma antiga vizinha. Dei à ela rosas brancas, pois sabia que a agradava imenso. Fechei a floricultura assim que ela saiu para poder tomar um café. No caminho passei em frente a uma igreja. Algo tomou conta de mim e me fez entrar. Chegando até o padre que junto de outros colaboradores arrumavam o altar, beijei-lhe a mão. Estava diante da viúva que meses atrás viera muito abatida procurar-me. Esperava que mais uma vez o pranto se iniciasse, mas obtive confissões de uma mulher cheia de esperança. Assim que ela saiu, continuei a arrumar toda a igreja junto dos colaboradores para os batismos do dia. Mais tarde, chegou a mim a primeira família trazendo a sua criança para o batismo. Joguei a água sobre a cabeça do bebe e toquei-lhe a cabeça abençoando-o. Olhava ao redor uma cena estranha. Uma água gelada na minha cabeça me deixou estremecido! Sacudi as mãos. Senti um pano cobrir minha cabeça e em seguida o abraço de minha mãe. Sorri feliz segurando o rosto dela. Olhava meu pequeno bebe recordado da época que sempre pedia para ser mãe. Olhei para o meu marido e meus familiares. Senti que não cabia em mim de felicidade de poder ter tanta riqueza ao mesmo tempo. Sai da igreja, e logo fomos a casa com parte de nossos familiares e amigos. Minutos após chegarmos a campainha tocou. Era uma amiga de muito tempo. Cumprimentei-a com um sorriso e um abraço. Fazia um tempo que não a via. Surpreendi-me ao notar que era o dia do batismo de seu filho. Conversei rapidamente com ela, e negando seus pedidos de entrar voltei para o carro. Sentia uma profunda inveja. Incontrolável inveja. Dirigi até meu apartamento. Chegando a casa, minha filha escrevia algo em seu caderno pessoal com seus fones de ouvido as alturas. Mirei-a e toquei em seu ombro pedindo para diminuir aquele barulho ensurdecedor. Já estava cansada de morar com ela. Simplesmente não era compreendida. Levantei irritada e sai de casa. Andando apresada desviei de pessoas e obstáculos. Entrei em um parque próximo. Com meus passos firmes e decididos tropecei em uma raíz. Senti meu corpo ser projetado para frente, quando estiquei as mãos para frente e segurei-me numa árvore.

sábado, 22 de maio de 2010

O fim do reencontro.


Quando me virei para trás, lá estava você parado com os mesmos olhos vazios. Seus cabelos tão secos como as últimas palavras ditas naquela terrível fria tarde. Segurava minha mala com a mão firme. Meus pés prenderam no asfalto úmido de Maio. Seu terno negro deixava-o mais magro do que já era. Sua pesada maleta envelhecia seu ombro. Sua face começava a ser entregue ao tempo. A característica barba por fazer ainda estava lá. Com o movimento único dos lábios pronunciava seu Francês duvidoso. Com um leve suspiro e um olhar lateral observou ao redor quem o cercava. Fiquei imóvel. Pegou seu café e sentou-se na mesa. Tirou de sua maleta um livro de fábula. Livro antigo. Frágil. Deixou o vago olhar recair pelas infinitas palavras grafadas. Embalado pelo ritmo do blues com aroma de café amargo, leu. Observei seus pés escondidos em sapatos gastos, obviamente disfarçados com uma boa camada de graxa. Vi quando seus mãos cansadas tocaram seus cabelos, alisando-os para fora de seus olhos. Prendia o suspiro e apertava os olhos. Soltei a mala. Virou uma página. Andava involuntáriamente em direção a vitrine. Induzida por uma vontade alheia, tinha as mãos tapando minha boca. Nitidamente, o café alimentava-o com calor. Talvez o único que agora tinha. Tirei de minha bolsa um batom. Delinei cada letra em palíndromo. Recuperei minha mala e afastei-me. Escutava ao longe seus passos desesperados. O barulho mortal. O respeitoso silêncio. Não olhei para trás. Estava feito.

sábado, 15 de maio de 2010

Romantismo no Séc. XXI


Todo dia acordo com uma vaga lembrança do seu sorriso. Todo dia fico esperando naquele degrau você passar com os suaves cabelos platinados e a mesma cara tonta. Todo dia virou dia de seguir tua sombra com os olhos na esperança de um contato. Todo dia é dia de platonear.
Já não lembro mais como isso começou. O tempo, esse mal, passou mais depressa que teus passos. Enganou-me e arrastou-me por vários e vários messes. Ah meu amor, perdoe-me por não domar o tempo; Mas é que meus olhos, tão obstinados por você, não alcançam mais os relógios. Quisera eu não estar assim tão entregue a esse devaneio de Outono. Se isso começou com uns goles de destilado, ou por um mero contato visual, não recordarei. O que importa meu amor é que todo dia por esse degrau você passa. E até quando passará?
Destino torto trouxe-me para cá. Destino louco deixou-me a tua sombra encontrar. Presente bárbaro. Presente tempo. Repito e repetirei até me cansar, se é que isso é possível, obrigado torto-louco. Ouço passos. Vejo sombra. É você mais uma vez. Balsamo perfume aquece meu peito. Incendeia mais uma vez desejo de lhe abraçar.
"Ae meu, tem isqueiro?"
Perplexo, seus olhos fixaram nos meus. Um tanto perdido toquei o bolso buscando um isqueiro. Aqueles castanhos profundos hipnotizavam-me. Sentindo o isqueiro com os dedos, trouxe-o até a altura em que a alva mão de minha amada com unhas bem feitas, poderia pegar. Fechou os olhos lentamente, ateou fogo num cigarro mentolado.
"Valeu." - Disse-me devolvendo-o majestosamente, e seguiu seu caminho com o característico caminhar.
Estava fora de mim. Respirando fundo, apenas conseguia mirar aquela belíssima figura afastar-se. Fora um sinal, de fato. Não. Algo não estava certo. Quem era aquele que a abraçava? Nunca o vira antes! Como ousa tocar minha amada dessa forma?
Não pude crer! Era um beijo!
Todo dia acordo com uma vaga lembrança do teu sorriso. Todo dia fico esperando naquele degrau você passar com os suaves cabelos platinados e seu filho no carrinho. Todo dia virou dia de seguir sua velha sombra com os olhos na esperança de um outro contato. Todo dia é dia de recordar quando você ainda podia andar.

domingo, 9 de maio de 2010

Não.


Não chegue assim com este bafo de leão profanando, sem ao menos pensar, falas já decoradas. Não apareça nesta soleira olhando fixo para mim se não for seguro. Não acorde esta manha caso já saiba que não vai valer à pena. Não. Não toque meu rosto puro. Não tire o brilho dos meus olhos com seus vícios e seu egoísmo. Não abrace meu corpo. Não toque meus lábios. Fique longe. Fique ai. Esqueça que um dia cheguei a sentir sua falta. Esqueça que um dia lhe contei segredos do coração. Esqueça que transformei sentimento em gesto escondido. Fique longe. Fique ai. Parado. Vire o rosto. Desvie o olhar. Não continue sendo assim tão certo sobre mim. Suma um pouco. Tome um chá. Vá ler um livro. Busque uma nova brisa em sua janela. Deixe-me aqui sentada. Deixe-me aqui sozinha. No meu quarto a meia luz encontro mais paz do que em seus braços confusos. Relaxe um pouco. Tire férias. Olvide. Abstraia. Abra sua mente para uma coisa mais produtiva do que esta peça. No final terei ido embora sem ao menos você notar. Estarei quilômetros de distância e incapaz de influenciar qualquer um de seus atos. Carregarei cada roupa para dentro da mala, e por fim partirei rumo ao desconhecido mundo que me aguarda com suas esquinas, buracos e cascos de garrafas de cerveja. Fecharei meus olhos, convicta de que haverá luz adiante. Convencer-me-ei de que o certo a fazer foi feito. E tu onde estarás? Provavelmente não saberei. Provavelmente não vou querer saber. Voltarei minhas mãos pagãs para o céu e agradecerei a um deus por finalmente voltar a ter olhos. E tu o que fará? Não terei idéia de teus passos. Não haverá vaga sombra em rua movimentada para sinalizar teus passos. Seguirei calmamente o meio-fio desta estrada rumo a qualquer lugar. Rumo ao futuro incerto e nefasto. Tudo me soará como uma forte ventania que invadiu meu quarto. Acordarei atônita sem nem lembrar teu nome. Tomarei daquele remédio forte. Voltarei a dormir. Não mais sonharei por alguns raios de luar.

A breve história de Roda.


Rodou no mundo e eu aqui fiquei. Rodou na vida inteira e a saia lá ficou. Tanto tempo de trampo. Tanto tempo pra tentar. Vida nova pra ostentar. Sempre certa e segura roda a vida a sua roda carregando os lás e cás. Sem saber se horário ou não, rodou a roda querendo rodear. Subiu ladeira, morro e montanha. Pulou de lá do alto. Rodou no ar. Rodou-rolou em chão massivo. Quebrou-se a roda em seu rodar-rolar. Maçarico em aço. Água em aço. Fé no aço. Assim, Aço novo formou. Rodou a roda dali pra fora para na vida rodar. Rodou esquinas e bares até não aguentar. Roda tonta pobre roda com seu aço a enferrujar. Cambaleia tonta roda já que estás a se embriagar. Acorda triste aquela roda que já não consegue lembrar. Noite passada fora a festa, hoje de manhã não há o que celebrar. Lateja roda com grande dor recordando dos lás e cás. Chora roda arrependida por seu destino ser rodar.

A despedida.


A soleira ainda estava molhada quando peguei minhas pesadas malas rumo a uma nova vida. Vento frio torceu meu rosto para a antiga casa. Antigos amigos, antigos amores, antigos conflitos, antigas muitas coisas que ainda estavam vivas em minha mente. Lembrava que ali naquela garagem havia aprendido a andar de bicicleta. Correr sobre rodas. Velocidade proporcionando ilusória liberdade. Naquela mesma garagem já havia até brigado. Olhos vermelhos. Face úmida. Gritos intermináveis que culminaram numa infinita separação. Coloquei minhas malas no banco de trás do carro. A rua continuava indiferente a todos os meus dramas. Rua pela qual tantas vezes fui e voltei. Rua por onde já caminhei sozinho e de mãos dadas. Entrei no carro. Dei a partida. A vizinhança de muitos anos. Inumeráveis lembranças. Reflexo de meus olhos num dos espelhos do carro. Não me encarei. Reposicionei-o. Passando uma mão pelo rosto. Respirei. Cheguei à primeira avenida. Acelerei. Estava partindo para sempre. Quantas vezes eu havia passado por ali? Será que um dia vou conseguir me lembrar com tanta clareza das coisas que agora vejo? Em meu peito uma dor incontrolável. Estava cumprindo minhas palavras de anos atrás. Estava indo embora em busca de uma vida independente. Estranho era me sentir tão parecido com uma criança ao se perder da mãe. Passava em frente à antiga escola. Aula por aula, colegas por colegas emergiam de minha memória. Brincadeiras tolas. Risadas altas. Descobertas incríveis. Fora o tempo em que via aquele mundo tão enorme. Tudo não passava de sons ecoando bem longe e abraços imagéticos projetados na tela consciente de meu passado. Chegara à principal avenida da cidade. Velozmente casas, lojas, pessoas, pontos de ônibus e carrinhos de bebe atravessavam de um canto a outro as janelas do carro, e com elas deixava parte de mim. Em cada uma daquelas esquinas um pensamento isolado me observava. Era preciso partir. Meu pé acelerava tremendo levemente sobre o pedal. Numa parte mais alta da avenida observei a imensidão de concreto constituindo incrível paisagem contrastante com o claro cinza das nuvens. Eu era um filho nascido do concreto ventre. Era filho de todo aquele acolhedor e inanimado concreto. Por mais que eu fosse embora, ainda assim seria parte daquela matéria e para ali seria atraído, ainda que por pensamento. Encostei o carro naquela vaga. Retirei minhas malas. Acompanhado de estranhos feitos da mesma matéria que eu, e de outros de outras matérias, misturei-me. Carregava as malas já sem sentir o peso. Talvez eu levasse mais do que eu precisava. Talvez eu o fizesse para não me esquecer do passado. Acomodando-me minutos depois em uma confortável poltrona, observei por uma janela voadora parte de mim marcado no chão por uma faixa indicando o fim. Acelerei. Acelerei o máximo que consegui. Emancipei-me do concreto ventre. Voava pela primeira vez sem que a liberdade fosse ilusória. Para o meu pavor vivia a verdade. E foi assim que nesse estranho novo mundo cheguei.

sábado, 8 de maio de 2010

92716

Café frio. Pacote de goma de mascar de menta aberto e semi-consumido. Semi-contos espalhados em minha mesa branca e indiferente. Meu óculos acaba de aterrissar sobre uma cômoda ao lado. Silêncio. Madrugada fria de inverno. O sono começa a torcer meus pensamentos e ossos. Semi-movimento de mão sobre a face. Olhos ligeiramente vermelhos. Bocejo. Silêncio. Curioso recorte dizendo "Amanhã tem saldão nas lojas "Compre Fácil"". Levantei-me. Semi-ser já sem expectativa de uma noite promissora. Olhei pela janela. Rua vazia. Neblina. Iluminação amarela. Carro azul estacionado. Olhei meu relógio. Parado. Nove horas, vinte e sete minutos e dezesseis segundos. Silêncio. Água passando pelos canos. Cachorro late longe. Deito-me. Luz sobre os meus olhos. Fecho-os. Braço sobre os olhos. Preguiça. Estalar da cama. Levanto-me. Apago a luz. Passos no corredor do prédio. Deito-me. Fecho os olhos. Passos na sala. Rezo. Passos no corredor do quarto. Respiro. Passos em meu quarto. Descanso em paz.